terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Digerindo

Lendo as páginas finais da "História do Cerco de Lisboa"(do Saramago). Das melhores coisas que li ultimamente. O revisor que desrespeita o texto alheio, troca um sim por um não e muda toda a história da retomada de Lisboa pelos portugueses. Mas o genial mesmo é perceber um cerco que não acabou, que se faz presente nas ruas, castelos, nas pessoas, oito séculos depois. O cerco da então cidade moura seria o cerco do revisor... da história...da Lisboa de hoje que se refaz...
Selecionei um trecho que para mim foi o melhor momento da leitura
"Raimundo Silva não tem pressa. Consulta gravemente o itinerário, por sua satisfação vai tomando minuciosas notas mentais, por assim dizer complementares, que atestam a sua própria contemporaneidade, lá na Calçada do Correio Velho uma soturna agência funerária, uma espuma branca no céu azul, de avião a jato, como no zul do mar a longa esteira de um barco rápido, a Pensão Casa Oliveira Bons Quartos da Rua da Padaria, o Restaurante Come Petisca Paga Vai Dar Meia Volta, mesmo ao lado das Portas do Mar, a Cervejaria Arco da Conceição, no dito, a alta pedra de armas dos Mascarenhas no cunhal de um prédio do Arco de Jesus, onde teria sido uma porta da cerca moura, a inscrição na parede, protestativa, o portal neoclássico do palácio dos condes de Coculim, que Mascarenhas eram, armazéns de ferro, nisso deram as grandezas, um mundo de coisas fugazes, transitórias, que o certo é todas serem, sem exceção, pois já o rasto do avião se dissipou e do resto dará o tempo conta a seu tempo, é só ter a paciência de esperar. O revisor entrou em Alfama pelo Arco do Chafariz d'El-Rei, almoçará por aí, numa casa de pasto da Rua de S. João da Praça, para os lados da torre de S. Pedro, uma refeição popular portuguesa de carapaus fritos e arroz de tomate, com salada, e muita sorte, que lhe calharam no prato as tenríssimas folhas do coração da alface, onde, verdade que não a sabe toda a gente, se acolhe a frescura incomparável das manhãs, a orvalhada, o rocio, que tudo é o mesmo, mas se deixa repetido pelo simples gosto de escrever as palavras e dizê-las de modo saboroso. À porta do restaurante estava uma rapariguinha cigana, de uns doze anos, estendia a mão, à espera, sem pronunciar palavra, apenas olhando fito o revisor, que, indo atrás dos pensamentos que o ocupam, não viu cigana, mas moura, na hora da primeira necessidade, quando ainda havia a quem pedir e os cães, os gatos e os ratos julgavam ter vida assegurada até à sua natural morte, por doença ou guerra das espécies, afinal, o progresso é uma realidade, hoje ninguém, em Lisboa, anda à caça de animalejos destes para comer, Mas o cerco não acabou, avisam os olhos da cigana." (pagina 73)

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